O artigo aborda os desdobramentos no Brasil da convocação feita pelo Papa Francisco, para um encontro mundial, em 2020, na cidade italiana de Assis, denominado Economia de Francisco, reunindo jovens, intelectuais e ativistas para repensar o desenvolvimento econômico do planeta. O evento ocorreu remotamente devido à pandemia do Covid-19, mas provocou o surgimento no país da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara, uma rede ecumênica, que reivindica paridade de gênero, radicaliza a proposição papal e se mostra como decorrência do Cristianismo da libertação. Baseado em consulta a textos sobre tema, observação de atividades transmitidas pela internet e entrevistas com jovens participantes dessa rede, o artigo avalia sociologicamente o significado dessa mobilização no país.

Introdução

Uma das iniciativas mais relevantes de Francisco, durante seu pontificado iniciado em 2013, foi o chamado para um encontro mundial com jovens de até 35 anos de idade junto com renomados intelectuais e ativistas sociais, de modo a repensar possíveis outros rumos de desenvolvimento econômico planetário, em face da grande desigualdade e do aquecimento global. Tal evento presencial, anunciado em 2019 na emblemática data de 1º de maio – Dia do Trabalhador – e denominado Economia de Francisco, em referência ao santo de Assis, deveria acontecer naquela cidade italiana em março de 2020, mas a pandemia do Covid-19 causou seu adiamento. Veio a ocorrer, através da internet, em novembro daquele ano, havendo ainda propósito de realização de um encontro presencial quando as condições sanitárias permitirem, se possível no segundo semestre de 2022.

No Brasil, a convocação papal levou a uma significativa mobilização, desde julho de 2019, quando agentes de pastoral católica, integrantes de organizações não-governamentais e professores universitários começaram a ser reunir em preparação para a atividade na Itália, também na perspectiva de realizar lá um encontro paralelo, que chegou a ser planejado para ocorrer no município vizinho de Perugia, mas, evidentemente, tampouco se viabilizou. Tal mobilização nacional, em 2019, culminou num encontro nacional ocorrido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em novembro, quando foi formalizada a criação da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC), cujo nome reverente àquela santa, remete ao princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Desde então, tem havido diversas atividades abrangendo reuniões, seminários e cursos sobre o tema (muitos com intensa crítica ao governo de Jair Bolsonaro), de modo a envolver padres, bispos, freiras e frades – não apenas franciscanos, mas de diferentes congregações femininas, como Filhas do Amor Divino e Irmãs do Imaculado Coração de Maria – e militantes católicos leigos, além de adeptos de outras vertentes religiosas (inclusive não cristãs) e mesmos ateus e agnósticos sintonizados, de alguma maneira, com a proposta. Verifica-se que, embora com grande predominância do catolicismo, a ABEFC tem um caráter inter-religioso, tendo havido a participação em seus eventos, dentre outras pessoas religiosas não católicas, da pastora luterana e secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) Romi Bencke, da pedagoga e liderança espírita Dora Incontri e da, agora falecida sacerdotisa do candomblé, Eleonora Alves.

Vale apontar ainda a participação ativa de Salette Aquino, coordenadora no Brasil da United Religions Initiative (UFI), que lidera, no coletivo da ABEFC, um grupo composto também por pessoas não religiosas, chamado de Inter-crenças.

Neste artigo, são discutidos elementos da atuação da Articulação, seus vínculos católicos, bem como facetas socioeconômicas e culturais do universo que se acredita corresponder à Economia de Francisco e Clara enquanto algo que perpassa atividades de entidades nacionais compostas por trabalhadores e que toma em consideração o fator espiritualidade, entendido nesse meio como atribuição de “alma à economia”. Por meio dele, considera-se que fatores não materiais deveriam ser levados em conta num almejado novo tipo de organização socioeconômica do planeta. Isto implica em considerar o que não é quantificável financeiramente, ou seja, uma “a economia que vai efetivamente além da prestação de serviços pagos e da produção e venda de bens”. Tal perspectiva espiritualizada, teria como principais valores: “gratuidade, solidariedade, reconhecimento, gratidão e reciprocidade” (Souza, 2020: 372-374).

Para pensar sociologicamente a noção de espiritualidade na Economia de Francisco e Clara, tomamos como ponto de partida o conceito de religiosidade, conforme Georg Simmel (2010). Ele o define como uma disposição individual inerente à subjetividade, independentemente da participação da pessoa num grupo de fé comum, sendo algo, portanto, diferente da religião, que implica, necessariamente, vivência comunitária marcada pela devoção. A identidade religiosa bastante prevalente na ABEFC é a católica, porém parte de seus integrantes têm efetivamente religiosidades distintas, embora igualmente caracterizadas pela reverência a Francisco de Assis devido à relação histórico-simbólica dele com a pobreza e a busca de preservação ambiental.

Os dados investigativos foram coletados mediante análise de artigos de indivíduos brasileiros e alguns estrangeiros engajados nessa mobilização, bem como o acompanhamento de atividades virtuais organizadas e entrevistas feitas com participantes do evento mundial ocorrido em 2020 – Economy of Francesco (EoF) – que são engajados na ABEFC. Trata-se de uma pesquisa feita inteiramente de maneira remota devido à
pandemia. Por meio deste artigo são discutidas as bases de sustentação desse fanciscanismo econômico, seus princípios e formas de organização no país.

O evento internacional

Para a organização do EoF foram incumbidos pelo papa: a Diocese de Assis, o Instituto Seráfico dos Franciscanos de Assis, a Economia de Comunhão – movimento ligado ao segmento católico de classe média Focolares (Lubich, 2004) – e, em nome do Vaticano, o Dicastério para Serviço de Desenvolvimento Humano Integral. O evento foi realizado, remotamente, entre 19 e 21 de novembro de 2020, reunindo cerca de 20 mil jovens estudantes, economistas, ativistas e empreendedores de 115 países, sendo mais uma centena deles do Brasil, a segunda maior representação, depois da Itália (Elias, Nascimento, Dulci & Vigial, 2020).

Outros dois países que tiveram destacado número de participantes foram: Estados Unidos e Argentina, terra natal do pontífice, vale lembrar. Todos os jovens foram distribuídos em doze vilas temáticas, sendo as sessões transmitidas ao vivo pela internet e disponibilizadas no canal do evento no YouTube¹. Entre os intelectuais participantes tiveram destaque: o indiano Amartya Sen, professor de economia da Universidade de Harvard e o também economista, porém bengali e vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus.

Como antecendentes fundamentais ao chamado papal estão, em primeiro lugar, a exortação apostólica Evangelii Gaudium (2013), que teve grande repercussão pelo contundente questionamento das relações produtivas no planeta. Posteriormente, Francisco publicou aquela que, na prática, foi sua primeira carta encíclica² Laudato Si’: sobre o Cuidado da Casa Comum, na qual ressalta a necessidade de conter o aquecimento global e faz crítica contundente à desigualdade, própria do capitalismo liberal, chamado por ele, no documento, de “sistema mundial atual” (Löwy, 2020). Por fim, temos Fratelli Tutti, publicada em 4 de outubro de 2020, dia de São Francisco de Assis, em que o papa se contrapõe à “globalização da indiferença”.

Como resultado do EoF houve a publicação de um documento final contendo uma série de compromissos³. Nele há doze pontos elencados como uma espécie de solicitação dos jovens aos governantes de todos os países: a) que as grandes potências mundiais e as grandes instituições econômicas diminuam sua ânsia por desenvolvimento; b) defesa da produção sustentável em todo o planeta; c) necessidade de pautar a custódia dos bens comuns no mundo; d) pelo fim do uso de ideologias econômicas que ofendam e descartem os empobrecidos; e) defesa do trabalho que se considera digno para todas as e fim da exploração de crianças e adolescentes; f) abolição dos paraísos fiscais; g) criação de novas instituições financeiras mundiais e reforma das existentes em prol da democratização econômica e da inclusão social; h) criação de comitê de ética independente em empresas e bancos; i) instituição de prêmios para os empresários inovadores que defendam sustentabilidade; j) educação de qualidade para as crianças do mundo; k) garantia da equidade de gênero no mundo do trabalho; l) fim da política armamentista em prol de maiores investimentos na educação e saúde.

No Brasil, especificamente, no âmbito da revista on-line do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), vinculado à homônima católica universidade jesuíta, foi criada uma coluna eletrônica denominada “Rumo a Assis”, na qual integrantes da ABEFC, intelectuais (não só católicos) e simpatizantes da causa vêm publicando artigos que abordam, entre outros pontos, a mobilização internacional a partir do chamado papal. Este foi o caso da jovem Luiza Dulci (2020), doutora em ciência sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e integrante do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo – vinculado ao Partido dos Trabalhadores – que tomou parte do evento e afirmou, em seu texto, que os brasileiros participantes de todas as regiões do país manifestaram desejo de mudanças expressivas na economia. Em seu entendimento, as vilas estimularam o pensamento alternativo e o engajamento na busca de outros rumos societários, estando o pronunciamento final do pontífice em bastante sintonia com cartas encíclicas. Por sua vez, o também jovem empreendedor social do setor de alimento orgânico da cidade paulista de Botucatu Diogo Lopes (2020), ressaltou o encontro da EoF como marco na busca de um desenvolvimento regenerativo da “Casa Comum – Mãe Terra”, para que os seres humanos deixem de causar danos, degradando o meio ambiente.

Para efetuar seu chamado mundial aos jovens, Francisco se baseou também numa experiência prévia sua em Buenos Aires, onde, em 2001, formara uma organização chamada Scholas Ocurrentes (Escolas de Vizinhos, em português), aproximando alunos de escolas públicas e privadas mediante atividades esportivas e culturais para a promoção de uma “cultura do encontro”, termo recorrente no discurso dele. Em 2013, ela se tornou uma fundação pontifícia vinculada à Santa Sé. Os antecedentes da formação da ABEFC, em 2019, foram diálogos, ocorridos em junho e julho daquele ano, entre três pessoas do Brasil e o presidente dessa fundação, o pedagogo argentino e amigo do pontífice, José Maria del Corral. As duas primeiras são o casal Célio Turino e Silvana Bragatto, dirigentes da uma entidade chamada Instituto Casa Comum e a terceira é o jovem Eduardo Brasileiro4, militante pastoral de um coletivo da Zona Leste paulistana denominado Povo de Deus em Movimento e que viria se tornar a principal liderança da ABEFC. Aquela mobilização levou à organização de um evento nacional, ocorrido entre 18 e 19 de novembro de 2019, na PUC-SP, contando com a presença de Corral e tendo como anfitrião o renomado professor de economia daquela instituição, Ladislau Dowbor. Tal evento reuniu ativistas de pastorais católicas, ONGs, movimentos sociais, intelectuais e representantes de outras vertentes religiosas, com participação destas em mesas redondas.

Cabe dizer que, em nome de uma uniformização internacional, a coordenação do evento na cidade italiana demandou a adoção do nome Economia de Francisco, tendo havido interlocução a respeito, porém manutenção da denominação adotada no Brasil, embora no logotipo, remetido apenas à coordenação na Itália, antes do EoF, foi removido o nome Clara. Além do Brasil, também a Argentina incorporou a homenagem à santa de Assis em mobilização nacional própria a partir do chamado papal.

Por uma ‘nova economia’

Em 24 de maio de 2015, veio a público a carta encíclica de Francisco Laudato Si’, na qual ele ressalta a necessidade de conter o aquecimento global e denuncia a grande desigualdade, própria do capitalismo liberal (Löwy, 2020). Pouco menos de dois meses depois, entre 5 e 13 de julho, ocorreu na Bolívia o II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, ocasião em que o pontífice ressaltou contradições do capitalismo neoliberal, embora sem usar tal termo. O agora mestrando em sociologia pela PUC Minas, onde também trabalha, Eduardo Brasileiro e Andrei Oss-Emer5 – outro jovem atuante na ABEFC e que é vinculado à entidade católica Caritas de Pelotas-RS – participaram do evento andino, experiência considerada marcante por ambos.

O chamado do Papa Francisco para repensar a economia global foi tomado como uma iniciativa importante por ativistas sociais e agentes de pastoral, algo que parece iniciar uma espécie de novo processo no catolicismo brasileiro, sendo mais uma decorrência do cristianismo da libertação (Löwy, 2000). De algum modo, isto se assemelha ao que ocorrera nos anos 1980, com a formação do chamado novo sindicalismo (Martins, 1994), bem como do PT (Secco, 2011) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST (Menezes Neto, 2007). Esse catolicismo politizado de esquerda também gerou nos anos 1990 e 2000, em grande medida, um conjunto de iniciativas econômicas pautadas pelo princípio da autogestão, contando com protagonismo da Cáritas e chamado de economia solidária (Souza, 2013). Tal tipo de desdobramento parece estar ocorrendo novamente, mas, desta vez, em relação à Economia de Francisco e Clara. Não por acaso, a economia solidária constitui um grande e expressivo segmento desse fraciscanismo econômico (Souza, 2020: 369-371).

Francisco propõe, em seus documentos e mensagens, que se recupere a centralidade do ser humano, em contraposição aos lucros e ganhos financeiros, dando um novo sentido para a economia, de modo a lhe recuperar ou atribuir “alma”. Isto implica em efetiva reformulação de prioridades, deixando a concentração de riqueza material subalterna ao chamado “cuidado da Casa Comum” e à “ecologia integral” (Delgado, 2021), em benefício dos mais pobres, conforme o exemplo dos santos de Assis. Para o teólogo católico Fábio Nascimento (2021), a proposta pontifícia ultrapassa efetivamente as fronteiras da igreja, sendo algo que diz respeito à ideia de fraternidade, através da busca de uma “economia a serviço da vida”. Nesta perspectiva, o papa seria um porta-voz sensato e líder mundial em condições de mobilizar pessoas para um “pacto global em favor de todos os seres vivos”. O autor afirma ainda que o princípio fundamental em tal proposição é dos indivíduos terem acesso a uma renda universal, não como a recompensa pelo trabalho, mas por se tratar de um direito básico.

O acesso a uma renda mínima para sobreviver constitui o chamado “bem comum”, tal como o direito à saúde, por exemplo, que foi abordado, de alguma maneira, no conjunto de documentos pontifícios que compõem a Doutrina Social da Igreja – DSI (Oliveira, 2001; Conselho Pontifício Justiça e Paz, 2003) e é retomado com força agora por Francisco. Em Laudato Si’, há demonstração da opção preferencial por um novo modelo de sociedade, na medida em que se faz a contundente crítica ao atual sistema produtivo altamente poluidor. Desde Rerum Novarum, publicada por Leão XIII em 1891, inaugurando a DSI, esta foi a primeira vez em que um pontífice se colocou mais claramente ao lado da classe trabalhadora em contraposição ao capital, embora o papa argentino não utilize nela e em nenhum outro escrito ou pronunciamento o termo capitalismo, optando, em seu lugar, por “sistema atual”, “economia atual”, e “cultura contemporânea”.

Como visto, uma renda que assegure a sobrevivência das pessoas, sobremaneira num contexto de crise aguda como o atual, devido à pandemia, constitui elemento central na proposição papal da Economia de Francisco, sendo tema de debate público internacional. No Brasil, o principal defensor desta proposta é o ex-senador e atual vereador paulistano, pelo PT, Eduardo Suplicy (2013). Seu projeto Renda Básica de Cidadania propõe a universalidade e a incondicionalidade da renda para todos os indivíduos, como um princípio de justiça (Suplicy, 2020). Não por acaso o parlamentar esteve no evento de lançamento da ABEFC, em novembro de 2019, assim como em outras significativas atividades realizadas por ela, identificando-se como seu integrante.

As referências de Francisco e Clara

Como visto, no Brasil, a mobilização em torno da proposta papal incorporou também a referência de Santa Clara. Para o membro da Ordem Franciscana Secular do município paulista de São José dos Campos, Marco Lima (2020), o despojamento de São Francisco tanto o inscreve num “catálogo dos excluídos” quanto o torna símbolo da “outra economia”. Tratar-se-ia de uma proposta fundada na “desapropriação” de: poder, dinheiro, propriedade e saberes concentrados mundialmente para manutenção da desigualdade, constituindo um “grito da natureza” para o “serviço da vida”. No mesmo sentido, a santa de Assis teria seu reconhecimento uma vez que “Clarapede para o Mosteiro de São Damião uma vida sem privilégios, sem garantias, sem propriedade alguma”, passando a se dedicar fraternalmente aos pobres. Para o economista carioca Marcos Arruda, ambos são guias para a “Economia da Vida”, havendo três lições desses santos a serem consideradas: a simplicidade, a solidariedade e a coerência, sendo que Clara enfrentou o patriarcalismo de seu tempo:

(…) a Economia de Francisco e Clara deve ser uma economia do suficiente em termos materiais, rejeitando a ideologia do crescimento econômico ilimitado, e com ele o excesso de consumo e de produção sem consideração com as gerações futuras e os limites dos ecossistemas. A partilha da posse dos bens produtivos e o acesso responsável de todas e todos aos bens comuns que a Terra oferece; o cuidado e o respeito a cadamoutra pessoa, colaborando para que os direitos de todo ser sejam respeitados; o trabalho pelo reconhecimento legal dos direitos da Natureza; a promoção das comunidades autogestionárias como unidades de produção e reprodução da vida e, portanto, protagonistas do seu próprio desenvolvimento econômico, social e humano (Arruda, 2020: 5-6).

Por sua vez, Gabriela Consolaro Nabozny (2020) – que também participou do EoF e é integrante da Juventude Franciscana do Brasil (JUFRA), mestrando em direito na Universidade Federal de Santa Catarina e uma liderança da ABEFC – afirma que a incorporação do nome Clara chama atenção para as mulheres invisibilizadas, em face da desigualdade também quanto a gênero. No Brasil, tal peculiaridade da mobilização em torno do chamado pontifício, enfatiza a valorização da mulher e da importância do cuidado do planeta (Boff, 1999). Tal cuidado, reitera-se, tem características femininas.

A proposição do pontífice recupera, em boa medida, a imagem de Francisco de Assis, visto, por vezes, de forma romântica. Predomina, na contemporaneidade, uma visão estereotipada desse santo, muito devotado no mundo, como alguém que agradou a todos por sua pregação de paz e fraternidade. O teólogo e professor da PUC Goiás, Alberto Moreira (1996), entretanto, relembra que ele nos oferece outra forma repleta de alteridade por ter sido “um fora de lugar (…) Francisco não serve para ajudar a tocar uma empresa, não serve para dirigir um negócio rentável, para fazer uma revolução política ou uma experiência científica” (Moreira, 1996: 340). O autor ressalta o caráter anti-sistêmico do santo, que sobrepôs com seu exemplo de vida o ser ao ter, propiciando, doravante, que muitas pessoas tivessem uma religiosidade inspirada nele, a despeito da filiação a grupos religiosos. Isso faz questionar a ideia de felicidade, bastante associada à posse de bens materiais, enquanto algo que passa também por projetos coletivos, como tem sido a aposta da ABEFC. A volta a São Francisco parece representar certo atalho do passado em direção a um futuro desejado, bem menos materialista e consumista.

Tal postura do pontífice, caracterizada por forte questionamento do desenvolvimento econômico vigente, inspirado no santo de Assis, tem tido ressonância para além da Igreja Católica. Ou seja, a influência de Bergoglio extrapola os limites do catolicismo, tornando-o um importante ator político internacional. Suas ações, permeadas de simbolismo, influenciaram a política brasileira e de outros territórios nacionais latino-americanos, sobremaneira Argentina e Bolívia (Souza & Batista, 2021). Seus gestos de solidariedade aos pobres, questionando o modo como a produção econômica ocorre, ressoam no país, através dessa rede de ativistas formada para a execução de sua proposta.

O funcionamento da ABEFC

A articulação nacional formada em torno da proposta papal tem um funcionamento caracterizado pelo formato de rede, com alguns grupos que se organizam para abordar determinados pontos. No site da ABEFC, ela é apontada como sendo: “Composta por pessoas que se dedicam a pensar e agir em prol de uma nova economia, visando à mudança do paradigma capitalista predatório”6. Verifica-se que há nela quatro grupos de trabalho: Articulação, Comunicação, Pesquisa e Inter-crenças – que abrange pessoas de religiões diferentes, além de agnósticos – e núcleos em processo de formação em oito unidades federativas: São Paulo, Minas Gerais, Amazonas, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Distrito Federal, Paraíba e Mato Grosso do Sul. Há ainda indivíduos de outros estados que vêm participando de lives, cursos e demais atividades organizadas e que atuam formando uma rede nacional.

Também conforme seu site, observa-se que a ABEFC adotou para si dez princípios que devem balizar suas ações, de modo a buscar a) economia a serviço da vida; b) economia que considere a espiritualida-de como dimensão que favoreça o afeto e a solidariedade; c) economia circular e integrada que elimine os hábitos de consumo de energias não renováveis e valorize as formas de energia sustentáveis; d) economia baseada na alimentação saudável e agricultura familiar que proteja os Direitos da Natureza; e) economia que evite a mercantilização de bens comuns como educação e saúde; f) economia que desenvolva outras formas solidárias, popular que valorize a comunhão; g) economia global menos desigual que rediscuta as dívidas internacionais com tributação mais social e ecológica; h) economia contra o Estado mínimo, por um Estado que seja estrutura de promoção do desequilibro entre igualda-de e liberdade; i) economia que valorize os coletivos, as comunidades, os grupos politicamente minoritários e socialmente desprivilegiados; j) economia do trabalho universal que evite a precarização do trabalhador.

No âmbito da ABEFC, ocorre ainda a mobilização de entidades nacionais que congregam trabalhadores engajados em empreendimentos coletivos com repartição de ganhos entre seus integrantes. Tais entidades são: Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), Rede Brasileira de Bancos Comunitários, Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), União Nacional das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis (Unicatadores), Central de Coope-rativas e Empreendimentos Solidários (Unisol Brasil), União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar (Unicafes) e a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab-MST). Os representantes de tais entidades já fizeram juntos duas lives e vêm se reunindo trimestralmente com integrantes da ABEFC para tratarem de assuntos de interesse comum. Um dos pontos discutidos foi a campanha, lançada em 1º de maio de 2021, no evento que rememorou os dois anos da convocação papal e que arrecadou, por dois meses, o montante de dez mil reais, destinados à compra de alimentos agroecológicos produzidos por cooperativas rurais autogestionárias, de modo abastecer famílias necessitadas das periferias de São Paulo, Belo Horizonte e Brasília.

Lideranças da ABEFC fizeram, em 7 de junho de 2021, uma primeira reunião com os integrantes da coordenação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB7. O presidente da entidade, dom Walmor de Azevedo, propôs que tais reuniões ocorram periodicamente, o que denota o respaldo da entidade nacional de bispos à ABEFC. Entre os bispos brasileiros a mais apoiar a Articulação está o auxiliar de Belo Horizonte e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB, dom Joaquim Mol. Além de colaborar com o cardeal da capital mineira, Mol é reitor da PUC-Minas, tendo disponibilizado a estrutura de editoração e comunicação da universidade à serviço da ABEFC. Com base nisso está em andamento a produção de documentários sobre as entidades de trabalhadores listadas acima, que “produzem conforme os princípios da Economia de Francisco e Clara”, além de cadernos temáticos a serem publicados em parceria com a também católica Editora Paulus. Mol já expôs seu ímpeto de levar a temática dessa proposição papal às demais universidades católicas do país – contando com apoio da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (ANEC) – com destaque para as pontifícias por elas terem vinculação institucional com o Vaticano8. Aspira-se introduzir seus preceitos nos cursos de graduação em economia.

E contando com o apoio institucional da PUC-Minas, ocorreu, remotamente, entre 19 e 20 de novembro de 2021, o II Encontro Nacional da Economia de Francisco e Clara, exatamente dois anos após o primeiro e um após o evento, também remoto, de Assis. Com formato parecido com o anterior, o evento contemplou a participação de representantes de tradições religiosas diferentes, membros de pastorais e movimentos sociais e intelectuais, entre eles o teólogo Leonardo Boff.

Elementos da recepção da proposta papal pela ABEFC

No Brasil, o desejo do pontífice de outra economia tem sido encaminhado através da ABEFC, com apoio efetivo da CNBB.Tendo havido em 12 de setembro de 2019 a convocação dele também para um encontro em prol do Pacto Educativo Global – de modo a repensar a educação no mundo –, algo que deveria acontecer em maio do ano seguinte e, igualmente, foi adiado, vindo a ocorrer, de maneira remota, em outubro. Alguns integrantes da ABEFC passaram a se dedicar também a atividades dessa iniciativa em âmbito nacional. Tais frentes de mobilização são interpretadas como complementares.

A recepção da proposta de Francisco no Brasil, quanto à economia, pode ser analisada, inicialmente, por meio da carta de princípios elaborada coletivamente pela ABEFC e que é uma espécie de certidão de nascimento dela9. O documento enfatiza a necessidade de valorização das mulheres para o desenvolvimento de um projeto de transformação socioeconômica. Ao valorizar os “saberes tradicionais das mulheres”, a carta faz uma crítica ao patriarcado como fator da desigualdade, algo que, indiretamente, atinge a masculina estrutura hierárquica da igreja em âmbito mundial. Há nela ainda posicionamento sobre aspectos ambientais e em relação à espiritualidade:

No caminhar junto, feminino e masculino buscam novos paradigmas: da competição para a colaboração; do egoísmo para a generosidade; da exploração para a sustentabilidade; da acumulação para a distribuição; do desequilíbrio nas relações entre pessoas e países para o equilíbrio, com comércio justo e solidário; do consumo desenfreado ao consumo responsável; da ganância ao altruísmo (…) a espiritualidade deve ser contemplada na Economia de Francisco e Clara a partir do exemplo iniciado pelo jovem de Assis, que se despojou de bens materiais para se enriquecer espiritualmente.

A economia “com alma”, conforme aponta a carta, tem como base esses fatores: afeto, solidariedade, convivência digna, diversidade, alteridade, empatia, solidariedade e criatividade. Há, portanto, pretensão de uma nova lógica no conceber e no fazer econômico, diferente daquele baseado tão somente na mercantilização de bens e serviços. A ABEFC reivindica uma economia pautada não pelo interesse exclusivamente individual, mas pela solidariedade, traduzida em formas colaborativas de produção, consumo e crédito. Neste sentido são valorizadas propostas e experiências de democratização do acesso a recursos, públicos tais como a renda básica da cidadania e o orçamento participativo (Souza, 2020: 368-372).

Discurso e desdobramentos

No discurso dos militantes da ABEFC é recorrente o uso do termo “realmar a economia”. Diogo Lopes (2020) entende que a “Alma que neces-sitamos reencontrar na Economia é alma da nossa própria relação com a Terra”. Ao considerar a visão sistêmica como referência para pensar a nova sociedade, em que não há separação entre os seres humanos e a natureza (e os outros seres vivos do planeta), advoga que o chamado papal resgata a “Sabedoria Ancestral combinada com um Futurismo integrativo, consciente e responsável”. Observa-se certo misticismo inter-pretativo.

Outro termo recorrente é “globalização da indiferença”, algo ao qual Francisco fez menção já na missa em Lampedusa, Itália, no dia 8 de julho de 2013, em prol das vítimas africanas de naufrágios durante tentativas de imigração indocumentada para a Europa. Tal expressão aparece também em Fratelli Tutti. Frequentemente, os militantes da ABEFC, fazem a saudação própria de São Francisco de Assis: “Paz e bem!”

Além das atividades já mencionadas, duas iniciativas relevantes vêm despontando no âmbito dessa articulação em prol da efetivação da proposta pontifícia, sendo uma original do país e outra vinculada a uma rede internacional, respectivamente: Casas de Francisco e Clara e Aliança Mulher Mãe Terra.

Enquanto a Aliança apresenta uma agenda global pelo acesso das mulheres à terra como condição sine qua non para a soberania alimentar no mundo, as Casas de Francisco e Clara nascem como lugares de vivência e imersão, através das quais a prática da Economia de Francisco e Clara acontece na vida das comunidades (Groh, 2020).

A primeira delas está sendo organizada em Florianópolis a partir de uma experiência piloto, por iniciativa do padre diocesano Vilson Groh, presidente de um instituto que leva seu nome e que desenvolve trabalhos comunitários nas periferias daquela cidade há quatro décadas. Trata-se de um espaço voltado para atividades de formação quanto à nova economia proposta pelo pontífice. Conta com o envolvimento direto de Gabriela Consolaro Nabozny10, da JUFRA, também residente na capital catarinense. Tal experiência, conforme aponta a própria ABEFC, propicia: a) encontro com os empobrecidos: espaço teológico dos que acreditam na justiça e na solidariedade; b) trabalho e contemplação: onde todas as pessoas sejam bem-vindas para formação de uma comunidade orante; c) cultivo e preservação da biodiversidade: aprendizado para se viver com poucas coisas, apenas com o necessário e sem desperdícios; d) inovação com energia limpa e renovável: garantia de participação por meio de novas formas de transformação social; e) potencialização do desenvolvimento regional e territorial: o saber científico a serviço da vida em plenitude; f) vivencia com aprofundamento humanitário e solidário: promoção dos princípios e valores da proposta do Papa Francisco; g) conhecimento da Teologia para a Libertação: laboratório de políticas públicas de Estado; h) farol de esperança para as juventudes: vivência de uma civilização da esperança com liberdade; i) partilha de experiências globais em busca de outro mundo possível: difusão de experiências de vida e práticas de construção solidária e participativa; j) escuta dos gritos da humanidade e encontro com a palavra sagrada: espaço de contemplação, vivência sagrada da vida (Groh, 2020).

Já a Aliança Mulher Mãe Terra “[c]onsiste em uma grande agenda de acesso à terra pelas mulheres, da defesa dos direitos da biodiversidade e dos recursos genéticos e a construção de relações justas em torno da produção, do comércio e do consumo de alimentos saudáveis”. Objetiva combater a insegurança alimentar e a concentração de terra no país, buscando articular iniciativas de “encurtamento dos circuitos de produção, beneficiamento, comercialização, consumo e descarte dos alimentos” (Elias, Nascimento, Dulci & Vigial, 2020). O jovem Andrei Oss-Emer (2020: 3), que a apoia, explica tal iniciativa:

Elaborada da Vila Agricultura & Justiça, a Aliança Mulher Mãe Terra consiste em uma grande agenda de promoção do acesso à terra pelas mulheres, da defesa dos direitos aos recursos genéticos e da construção de relações justas em torno da produção, do comércio e do consumo de alimentos saudáveis.

A proposta se justifica pelo fato de as mulheres protegerem as sementes, cultivarem hortas comunitárias, conhecerem e cultivarem plantas medicinais e manejarem animais de pequeno porte. Tal projeto busca incentivar, portanto, o protagonismo feminino no meio rural.

Militância anticapitalista e controvérsias

Na carta que marca a identidade da ABEFC, há um posicionamen-to contundente, qual seja:

Se quisermos viver a vida tal qual nos foi ofertada, como dádiva e milagre, será preciso reinventar esse Sistema. No capitalismo não é possível construir a casa comum, pois esse sistema societário global é desumanizador e tem levado a humanidade ao suicídio. Nossa opção preferencial é pelos pobres, pelos excluídos, pelos desvalidos.

Verifica-se a rejeição do capitalismo e o anseio por sua superação. No Brasil, portanto, o projeto da nova economia, proposto por Francisco, tem sido mais radical do que em seu nascedouro – no âmbito dos que articulam a EoF junto ao Vaticano – e na forma com que tem sido recebida em outros países, mesmo a Argentina. No caso brasileiro, tal economia tem caráter predominantemente anticapitalista.

Há aqui um embate. Isto porque o economista – que foi nomeado diretor científico do evento EoF e é atuante na Economia de Comunhão – Luigino Bruni (2002, 2017)tem um posicionamento favorável ao capitalismo. Bruni (2020) entende que o projeto de Francisco significa a garantia da justiça social, com distribuição “correta” dos recursos globais que sejam compatíveis com o meio ambiente. No entanto, estabelece uma distinção entre capitalismo protestante e capitalismo católico, afirmando que o primeiro, de cunho anglo-saxão – que domina o mundo – deve ser substituído pelo segundo, próprio da cultura latina. Ele afirma que o capitalismo protestante, em vistas de seu sentimento de culpa para com a riqueza, busca retribuir o ganho acumulado durante a vida. Possibilita, portanto, um tipo de economia que acumula e concentra a riqueza nas mãos de poucos, visto que a retribuição, que ocorre a partir do sentimento de culpabilização, surge somente após o indivíduo conquistar sua riqueza. Em contrapartida, no “capitalismo católico” a intenção primeira do empresário é criar trabalho e pagar seus impostos para benefício da comunidade, em detrimento do ganho monetário como objetivo primeiro. No entendimento do economista italiano, trata-se de um capitalismo “familiar” e “comunitário”, articulado em torno do “fazer com” e não do “fazer para”, segundo ele, da lógica anglo-saxã. Nesta perspectiva, enquanto se faz negócio, também é organizada a comunidade, com investimento social no território. Este é o modelo que o diretor científico do EoF defende como solução para a redistribuição da riqueza, com suposta valorização comunitária.

A exposição das ideias de Bruni no país tiveram repercussão negativa fazendo com que autores vinculados, direta e indiretamente, à ABEFC se manifestassem publicamente. O sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira (2020), articulador do católico Movimento Nacional Fé e Política, rebateu o economista italiano, apontando que ele concebe a proposição do papa enquanto economia de mercado apenas “devidamente aprimorada pelo cristianismo”. Oliveira afirma que a proposta de Francisco exige a busca de superação do capitalismo em prol da sociedade do chamado bem vivere que experiências brasileiras, tais como a do MST, que, na verdade, são coerentes com a proposição papal, em vez da ideia do “capitalismo católico”.

A proposta do pontífice, no âmbito da ABEFC, ganha visivelmente uma perspectiva anticapitalista e até mesmo de um “socialismo democrático e fraterno” (Souza, 2020). Para Frei Betto (2019), Francisco de Assis, inspirador do pontífice e quem o leva a fazer o chamado por uma nova economia, é pioneiro na crítica ao capitalismo, ainda incipiente, em sua época. O frade dominicano afirma que o objetivo principal da Economia de Francisco deve ser o de pensar uma proposta alternativa à economia hegemônica, isto é, a capitalista, geradora de exclusão social. Outro conhecido religioso católico a participar, de algum modo, desse debate foi o monge beneditino Marcelo Barros (2020), ao enfatizar que o EoF teve como um de seus principais resultados a comprovação da “falsidade do dogma neoliberal”. Segundo ele, não é possível pensar a proposta dentro dos limites impostos pela economia de mercado.

Por sua vez, Ladislau Dowbor (2020) assevera que a proposição do papa tem como cerne a ideia de que a economia deve servir aos interesses da sociedade e não o contrário. Ele entende se tratar de um projeto que constitui outra forma de organização socioeconômica, contrária à capitalista.

O agente da Pastoral Operária que igualmente participou do EoF, Pedro Augusto (2020), apontou a grande rejeição, no evento, do capitalismo, embora frisasse que havia variações no modo como tal recusa ao sistema se dava. Já Eduardo Brasileiro (2020) compreende que o capitalismo foi construído com base em uma “economia de morte, exclusão e mentira”. Ele afirma que é preciso confrontá-lo a partir de possibilidades edificadas por sujeitos das “periferias do planeta”.

Cabe frisar que os intelectuais e ativistas brasileiros não estão sozinhos na interpretação de que a proposta de Francisco é anticapitalista. O economista e padre jesuíta francês Gaël Giraud (2015) endossa que a proposta do pontífice, baseada em Laudato Si’, privilegia a busca de condições de vida decente da humanidade. Aponta que o documento papal faz uma denúncia do lucro privado e da lógica da concorrência como mecanismo de prosperidade individual.

O próprio papa tem denunciado o sistema econômico dominante no mundo – sem nomeá-lo, vale lembrar – e defendido um modelo oposto. Em missa celebrada no Vaticano em abril de 2021, afirmou enfaticamente em sua homilia que a partilha de bens “não é comunismo, é cristianismo na sua forma mais pura”<sup<11. Já na publicação de Evangelii Gaudium, em 2013, mesmo ano em que se tornou pontífice, foi chamado de marxista devido à sua notória rejeição do capitalismo (Coelho, 2018).

Quanto a esse tema, especificamente, houve um posicionamento contundente da ABEFC, em face de algo que vem ocorrendo internacionalmente. Em 8 de dezembro de 2020, foi lançado o Conselho para o Capitalismo Inclusivo, reunindo 27 dos maiores investidores e empresários de grandes corporações multinacionais autodenominados: “guardiães do capitalismo inclusivo”12. Tal conselho foi constituído em parceria com o Vaticano, através da intermediação do cardeal negro do país africano Gana, Peter Turkson, que é responsável, no organograma da Santa Sé, pelo mesmo dicastério (departamento de governo da igreja) organizador do EoF. Tal grupo, que começou a se organizar em 2016 e foi recebido em audiência por Francisco em 11 de novembro de 2019, constitui a mais contundente das respostas do mundo corporativo às ideias socioe-conomicamente progressistas do pontífice. A ABEFC recebeu a notícia do lançamento daquele conselho com muita indignação, considerando-o como efetivamente paradoxal. Em decorrência disso, ela emitiu, em 23 de dezembro de 2020, uma nota condenando aquela mobilização empresarial feita com aval do Vaticano em prol do capitalismo liberal, contendo a seguinte epígrafe: “Água seca, carvão limpo, gelo quente, nazismo fraterno, capitalismo inclusivo”13. Em tal posicionamento e outros mais, a ABEFC não vem enfrentando contestação.

Considerações finais

Conforme apontou Simmel (2010), a religiosidade – que antecede a religião – passa a predominar no mundo moderno, dada a grande quantidade de pessoas religiosas que não têm vínculo e tampouco se identificam com instituições e grupos religiosos14. A religiosidade é, portanto, um relevante traço das relações sociais, abarcando o modo como indivíduos articulam sentidos de sua existência e seus esforços, para além de vínculos institucionais e grupais. Tal chave interpretativa contribui para a compreensão do significado da assimilação do chamado papal da Economia de Francisco no Brasil.

Como visto, a mobilização em torno da proposição pontifícia no país – aproveitando valores e práticas disseminados, sobremaneira em Comunidades Eclesiais de Base e pastorais sociais – constitui mais um desdobramento significativo do cristianismo da libertação. Este tem como marca o questionamento do status quo e a reivindicação de democratização, tanto eclesial (Boff, 1981), quanto socioeconômica (Löwy, 2000). Vale lembrar o caráter ecumênico da ABEFC, assim como o fato de o cristianismo da libertação ter se espraiado também para algumas igrejas protestantes (Altmann, 1994).

Quanto à recepção brasileira da iniciativa do papa, de contribuir para a reformulação da economia mundial, entendemos que há duas diferenças significativas em comparação com o que tem se desenvolvido no seu entorno no Vaticano: 1) a incorporação do tema da equidade de gênero, pois se entende que uma nova economia só poderá ser edificada mediante equilíbrio na relação entre homens e mulheres; 2) o caráter anticapitalista da interpretação brasileira, que radicaliza a propositura de Francisco no sentido de que tal nova economia deve ir além de algu-mas reformas do sistema societário hodierno.

Como visto, Francisco não usa o termo capitalismo em seus discursos críticos, escritos e falados. Isto, porém, não evitou que ele fosse chamado de “marxista” e “comunista” pela direita cristã, em face de suas iniciativas, sobremaneira em prol de outra economia para o planeta. Por outro lado, no entanto, o capitalismo é defendido pelo diretor científico do EoF, Luigino Bruni e pelo cardeal Peter Turkson, em parceria com alguns dos maiores empresários e executivos mundiais15. Seja com as alcunhas: “católico”, “familiar”, “comunitário” ou “inclusivo”, o fato é que o capitalismo é rejeitado, majoritariamente, pela ABEFC, enquanto algo cuja tentativa de suavização não o torna aceito, sendo esta uma de suas marcas. A outra é a busca de valorização da mulher, representada na adoção do nome Clara, algo que gerou certo embate com a organização do evento sediado na Itália.

Aos poucos, esse franciscanismo econômico parece se disseminar no meio católico, conquistando a adesão de pessoas de outras tradições de fé, assim como de quem não se identifica com instituições religiosas, em face da simpatia pelos santos de Assis e do anseio por transformação socioeconômica.

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Notas

1 Disponível em: < https://www.youtube.com/channel/UCVKz5pM4geof3Nv-ZO7GOylw > (Acessado em 20/05/2021). As referidas vilas são: Finanças e Hu-manidade; Agricultura e Justiça; Energia e Pobreza; Lucro e Vocação; Negócios em Transição; Gestão e Dádiva; Trabalho e Cuidado; Políticas e Felicidade; CO2 e Inequidades; Vida e Estilo de Vida; Negócios e Paz; Economia e Mulheres.

2 Isto porque a anterior, de 2013, Lumen Fidei, havia sido escrita, em maior parte, por Bento XVI.

3 Disponível em: < http://francescoeconomy.org > (Acessado em 21/04/2021).

4 Entrevista com Eduardo Brasileiro no modo remoto em 18/06/2021.

5 Entrevista com Andrei Thomas Oss-Emer no modo remoto em 23/06/2021.

6 Disponível em: < https://economiadefranciscoeclara.com.br > (Acessado em 25/04/2021).

7 Seu presidente, dom Walmor Oliveira de Azevedo (arcebispo de Belo Horizon-te), seu secretário geral: dom Joel Portela Amado (auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro) e seus dois vice-presidentes: dom Jaime Spengler (arcebispo de Porto Alegre) e dom Mário Antonio da Silva (bispo de Roraima).

8 Neste sentido, entre junho e julho de 2021, ocorreram os dois primeiros cursos de extensão sobre o tema, respectivamente, na PUC Goiás e no Centro Universitário Uningá, em parceria com a Arquidiocese de Maringá.

9 Apresentada no evento da PUC-SP em novembro de 2019, ela ganhou sua versão definitiva em 18 de janeiro de 2020, numa reunião nacional ocorrida também em São Paulo, mas no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/594766-carta-de-clara-e-francisco-direto-do-brasil-para-o-en-contro-mundial-em-assis > (Acessado em 12/06/2020).

10 Entrevista com Gabriela Consolaro Nabozny no modo remoto em 23/06/2021.

11 Disponível em: < https://www.terra.com.br/noticias/mundo/europa/pa-pa-dividir-…wAR2-fuh-wcf6oOk5FOy0Jt2lrYTHWgfGMbEB2xSBSHDHG7nrl-zyx1OxmAHE > (Acessado em 01/06/2021).

12 As principais empresas representadas são: Johnson & Johnson,Visa, Mater-card e Allianz.

13 Disponível em: < https://justicapaz.org/index.php/19-capitalismo/1558-so-bre-o-lancamento-do-conselho-para-o-capitalismo-inclusivo-com-o-vaticano–nota-da-articulacao-brasileira-pela-economia-de-francisco-e-clara > (Acessado em 04/02/2021). É importante dizer que o economista Luigino Bruni (2017), diretor científico do evento de Assis, também busca valorizar aspectos que con-sidera positivos do capitalismo.

14 Na população mundial, a proporção é de 16% que se identifica como sem religião, segundo dados da Pew Research Center (2017), ao passo que no Brasil, conforme o censo demográfico do IBGE – ainda de 2010 – são 8%, sendo que apenas 0,39% se declaram ateus e agnósticos.

15 A convivência do papa com tais posições favoráveis ao capitalismo denota, por um lado ambiguidade, por outro certa habilidade política de sua parte.

Publicado originalmente: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/csr/article/view/15832/10847

Autores

Flávio Munhoz Sofiati
Flávio Munhoz Sofiati
Universidade Federal de Goiás
André Ricardo de Souza
André Ricardo de Souza
Universidade Federal de São Carlos