Este texto é um produto da equipe de Análise de Conjuntura da CNBB. É um serviço para a CNBB. Não representa, contudo, a opinião da Conferência. A equipe é formada por membros da Conferência, assessores, professores das universidades católicas e por peritos convidados. Participaram da elaboração deste texto: Dom Francisco Lima Soares – Bispo de Carolina (MA), Frei Jorge Luiz Soares da Silva – assessor de relações institucionais e governamentais da CNBB, Pe. Thierry Linard de Guertechin, S.J. (in memoriam), Antonio Carlos A. Lobão – PUC/Campinas, Francisco Botelho – CBJP, Izete Pengo Bagolin – PUC/Rio Grande do Sul, Maria Cecília Pilla – PUC/Paraná, Jackson Teixeira Bittencourt – PUC/Paraná, José Reinaldo F. Martins Filho – PUC/Goiás, Ricardo Ismael – PUC/Rio, Manoel S. Moraes de Almeida – Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Marcel Guedes Leite – PUC/São Paulo, Robson Sávio Reis Souza – PUC/Minas, Ima Vieira – REPAM, Tânia Bacelar – UFPE, Maria Lucia Fattorelli – Auditoria Cidadã da Dívida, José Geraldo de Sousa Júnior – UnB e Melillo Dinis do Nascimento – Inteligência Política (IP). Nesta edição contamos com a colaboração de Eduardo Brasileiro, liderança da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC).

Não há dúvidas de que houve um forte crescimento da economia e um gigantesco avanço do progresso técnico nos últimos cem anos. Qualquer pessoa que tivesse vivido até meados do século passado dificilmente poderia imaginar que a dinâmica da produção de bens e serviços e o desenvolvimento tecnológico alcançariam tal dimensão e tanto poder sobre o destino e o dia a dia das pessoas. Também, não há dúvidas de que, toda essa riqueza e que todo o progresso técnico disponível, não foram capazes de resolver problemas básicos da população ou construir um mundo melhor. A fome, a doença, a violência e a ignorância ainda estão presentes no cotidiano de milhões de seres humanos. O desafio, então, é perceber que todo essa riqueza e toda a tecnologia disponível não só não resolveram problemas fundamentais da humanidade como serviram para agravá-los, aumentar de forma brutal as desigualdades entre as pessoas e piorar as condições de vida no planeta.

Dados estatísticos mostram que a economia mundial vem crescendo continuamente desde o fim da grande depressão dos anos 1930, mesmo com crises esporádicas, com apenas duas exceções: (a) em 2009, provocada pela crise do subprime nos Estados Unidos e (b) entre 2020 e 2022, provocada pela pandemia da COVID-19. Nos últimos sessenta anos o PIB mundial cresceu 8,2 vezes enquanto a população cresceu 2,6 vezes, o que permitiu um crescimento per capita de 3,1 vezes.

No entanto, a renda gerada por essa produção não foi igualmente distribuída para a população e, ao contrário, está bastante concentrada. Segundo o Programa de Desenvolvimento da ONU, considerando cento e quatorze países, em mais de 42% deles o 1% mais rico da população detém mais de 15% de toda a renda gerada, sendo o Brasil um dos países com maior concentração. Em outro estudo conduzido pelo Banco Mundial, para 143 países com mais de um milhão de habitantes, em 42% deles os 10% mais rico se apropriam de mais de 30% do total de rendimentos e o Brasil se posiciona em 3º lugar entre os países com menor parcela do rendimento total recebido pelos mais pobres.

Essa má distribuição da renda se reflete na forte diferenciação nos padrões de vida das populações de maneira que, enquanto milhões de pessoas enfrentam dificuldades muitas vezes intransponíveis para ter suas necessidades básicas de alimentação, saúde, educação, segurança, saneamento, moradia e emprego minimamente atendidas, uma quantidade bem menor de pessoas detém grande parte da riqueza e da propriedade.

A insegurança alimentar está aumentando no mundo, mesmo em alguns dos países mais desenvolvidos, situação agravada pela pandemia, situando-se hoje em nível superior ao observado em 2019. Em todo o mundo quase 30% da população está sujeita a algum tipo de insegurança alimentar, sendo esse percentual muito mais grave na África (60,9%) e América Latina (37,5%).

Em relação aos demais direitos, conforme dados do Banco Mundial, apesar da alfabetização ser cada vez maior, 13,2% da população mundial ainda era analfabeta em 2020; 25,7% não tinham acesso a rede de água tratada e 8,6% a eletricidade. Em 2022, havia no mundo mais de 35 milhões de refugiados, seja decorrente de perseguição política, seja por conflitos armados e a taxa de assassinato e homicídio atingia 5,6 para cada cem mil habitantes no planeta, em 2019, sendo muito mais frequente entre as populações de baixa renda. Por fim, cerca de 5,8% da população com 15 anos ou mais não encontrava emprego de qualquer espécie em 2022, sendo que esse percentual subia para 15,6% entre os jovens com idade entre 15 e 24 anos.

São dados como esses que levaram o Papa Francisco a afirmar que essa é uma economia que mata! E que é preciso dizer não a uma economia de exclusão e desigualdade!

O economista Cristovam Buarque disse certa feita que, ao sobrevoar uma das grandes cidades da América Latina tinha a mesma sensação que alguns físicos descreveram, depois de sobrevoarem Hiroshima e Nagasaki. Tal era o poder de destruição da sua ciência. Talvez esse desconforto se agravasse ao pensar que os físicos sobrevoaram para avaliar os efeitos da bomba e corrigir os rumos da ciência, enquanto muitos economistas, ainda hoje, sobrevoam a realidade como arautos de um modelo de crescimento e de modernidade que tende a potencializar ainda mais a destruição.

Basta transformarmos esse voo em uma caminhada pelas ruas de nossas cidades para constatar o verdadeiro desastre social e ecológico em que se encontram, resultantes de uma política econômica assentada em projetos megalomaníacos de certos grupos econômicos, em um sistema de dívida que consome grande parte dos recursos públicos e no descaso e no abandono das políticas sociais. Tudo em nome do “progresso” e da “modernidade”.

Outro economista, John K. Galbraith, escreveu que, em poucas coisas na vida, existe um hiato tão grande como entre uma declaração lacônica e antisséptica sobre a política econômica, por parte de um economista bem falante, refestelado em seu tranquilo gabinete de trabalho, e o que acontece com o povo quando ela é posta em prática. Nós pudemos ver isto de perto muitas vezes. O que em Brasília eram medidas para garantir a estabilidade da moeda ou o superávit fiscal, nas ruas de nossas cidades se transformaram em miséria, violência e desesperança. O que para uma grande corporação era uma opção estratégica ou um reposicionamento de mercado, nas casas de seus trabalhadores se transformou em desemprego, fome e depressão.

A palavra economia originou-se da palavra grega oikonomía que, por sua vez, é constituída pelas palavras oikos (casa) e nomos (lei) e poderia ser traduzida como “a arte de bem administrar uma casa ou estabeleciment particular ou público”. Assim sendo, o que deveríamos perguntar é “o que está acontecendo com a nossa casa”? Por que nossa casa está tão mal administrada? E por que as pessoas estão sofrendo tanto por conta das questões econômicas?

As respostas para essas perguntas pressupõem o entendimento de três questões fundamentais que as precedem. Assim, a primeira questão que este texto pretende responder é se a crença de que o desenvolvimento pleno da humanidade vai decorrer do simples aumento geral da produção e da criação contínua de novos produtos para consumo das minorias abastadas, sem a construção dos mecanismos que garantam o acesso a produtos essenciais e a uma vida digna para a maioria da população, não passa de um grande mito, alimentado pelas principais teorias e pelo discurso econômico dominante.

Em seguida, a partir dos conceitos de “neoliberalismo” e “individualismo”, pretende-se mostrar como o modelo individualista, galgado sobre a égide da propriedade privada, produz a dissolução dos vínculos comunitários e a crise de todas as instituições que poderiam ser garantidoras da ordem do mundo, do ajustamento de sentido social, uma vez que os indivíduos perseguem metas cada vez mais alienadas de uma participação mais ampla, e se tornam incapazes de opções que coloquem em risco os seus benefícios pessoais. É a segunda questão que está como pano de fundo desta análise de conjuntura.

Esse processo tem relação direta com a dinâmica da acumulação capitalista que cria um padrão de oligopolização no qual poucas e gigantescas empresas comandam a geração da produção e da renda. A isto soma-se o processo de financeirização do capitalismo, no qual a esfera financeira passa a gerir parcela cada vez maior da riqueza, também comandado por poucos e poderosos grupos financeiros, que mobilizam os mercados de moedas, ações e títulos e nesse movimento conseguem capturar o Estado e colocar os recursos públicos a serviço de seus próprios interesses.

O resultado não poderia ser outro: precarização, pobreza, desigualdade e exclusão. Não é por acaso que das 169 metas para o Desenvolvimento Sustentável, estabelecidas pela ONU na Agenda 2030, no Brasil 102 metas estão em situação de retrocesso, 14 estão ameaçadas, 16 estão estagnadas em relação ao período anterior, 29 estão com progresso insuficiente e apenas 3 podem ser consideradas como tendo progresso satisfatório. E isto não é muito diferente em outros países subdesenvolvidos. Pobreza, fome, insegurança alimentar, precarização do trabalho, desemprego, habitação precária, injustiça, violência, desigualdade, catástrofes ambientais, exclusão social e muitas outras mazelas hoje fazem parte do cotidiano de milhões de famílias no Brasil e no mundo. Isto em mundo cada vez mais rico. Essa é a economia que mata!

A substituição da lógica do direito pela lógica da mercadoria esgarça e atomiza o tecido social uma vez que o cidadão dá lugar ao consumidor, que deve ter suas necessidades fundamentais atendidas pelo consumo de mercadorias, ou seja, dentro das regras do mercado. Educação, saúde, segurança, moradia, transporte etc. são mercadorias, como outras quaisquer, que precisam ser compradas por aqueles que tem dinheiro a partir da lógica do lucro exercida pelos fornecedores de tais serviços. Sob a perspectiva do cidadão os direitos devem ser extensivos a todos. Sob a perspectiva do consumidor, apenas quem tem dinheiro tem direito a ter suas necessidades atendidas.

Resta, portanto, o questionamento de por que o Estado, diante desse quadro catastrófico, não é capaz de resolver ou mitigar os problemas vividos pela população? A resposta está no fato de que o Estado não é resultado de uma imposição divina ou de um contrato social firmado entre as classes, mas reflete a correlação das forças entre elas, na disputa pela hegemonia para a conquista de seus objetivos e realização dos seus interesses. Sob esse ponto de vista, as políticas públicas sociais recebem cada vez menos recursos, direitos são vistos como mercadorias a serem compradas. E o orçamento público acaba sendo apropriado por poderosos grupos no financiamento da acumulação de capital. O resultado não poderia ser outro: uma enorme concentração de riqueza nas mãos de uma pequena minoria privilegiada enquanto grande parte da população convive diariamente com a miséria e a fome. Aqui está a terceira questão, oferecida como um debate estrutural e como uma análise de conjuntura.

No Brasil os principais gastos sociais consomem um montante várias vezes inferior ao que se gasta com o serviço da dívida, mecanismo que permite que parte significativa dos recursos públicos seja transferida aos detentores de títulos fomentando o processo de financeirização da economia e a concentração da riqueza. Se considerarmos que o Brasil tem um modelo de arrecadação altamente regressivo, no qual a maior parte dos recursos advém de impostos que incidem sobre o consumo, e não sobre a riqueza e o patrimônio, temos um modelo que age como uma espécie de “Robin Hood” às avessas, tirando dos pobres para dar aos ricos.

Quando é capturado pelo poder econômico e financeiro, o Estado resulta impotente. Claro que há contradições e lutas sociais e políticas. Mas há uma tendência muito forte de impotência. A razão? A sangria dos recursos para sustentar a financeirização faz do equilíbrio das contas públicas, o ajuste fiscal e o superávit primário a prioridade dos governantes. Ao invés de políticas sociais o resultado é crise permanente e perda de direitos. A insatisfação de grande parte da população, decorrente desse processo, leva ao desgaste dos partidos tradicionais e ao favorecimento de candidaturas populistas, que se colocam como antagonistas ao sistema político e às instituições, colocando em risco a própria democracia. Ao mesmo tempo, há uma distorção na apropriação dos fundos públicos que deveriam estar a serviço das políticas públicas sociais.

Mas, diante da gravidade da situação não é suficiente criticar e denunciar as mazelas da “economia e o nosso modo de a conceber. A lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade. Nos últimos anos, podemos notar como às vezes os próprios pobres, confundidos e encantados perante as promessas de tantos falsos profetas, caem no engano dum mundo que não é construído para eles”. Mais do que isto, é preciso mergulhar na realidade e desnudar o real, para encontrar e propor soluções que superem esse quadro e permita que sejam criadas outras relações sociais, políticas, culturais e religiosas para construir um novo pacto social.

É nesse sentido que o Papa Francisco propõe uma mobilização global para propor alternativas a esse modelo predatório que consome o planeta para o benefício de poucos e marginaliza os pobres e vulneráveis. Mais do que nunca, é preciso colocar alma na economia. É preciso superar a lógica individualista que busca o enriquecimento às custas dos outros e construir novas relações baseadas em um humanismo solidário. É preciso reconstituir o território como espaço de cidadania ativa e estabelecer uma nova ecologia e uma nova economia baseadas na inovação, na solidariedade e na cooperação, de maneira que a macroeconomia seja reorientada para os investimentos ambiental e socialmente relevantes.

Por isto, mais do que nunca, nós precisamos falar de uma outra economia!

Para ler a análise na íntegra, assim como as referências do texto original, acesse o arquivo neste link.